quinta-feira, 15 de março de 2007

" Radicais Livres " no CCB


RADICAIS LIVRES 3.1


18 Março 21.00 CCB PA


SCIARRINO SCELSI
DONATONI
PINHO VARGAS

inventar a música em cada obra

“Ah, os tempos modernos são tão difíceis...”


Esta frase, escrita numa parede de Paris, pode bem ser a expressão do desespero do ouvido contemporâneo.
Sujeito a ouvir os sons da descontinuidade interroga-se sobre o seu papel, não se dando conta de que o paradoxo do ouvinte contemporâneo, que busca uma continuidade histórica e fundamentos, reside nessa mesma impossibilidade.

Cada obra retoma o gesto fundador – e o gesto fundador não tem memória: a memória começa nele mesmo.

Abertura e curiosidade deviam, portanto, marcar a escuta contemporânea, relativamente às novas possibilidades da música, dos instrumentos, das linguagens e dos sons, mais que a impaciência e a intolerância perante músicas que não fazem soar os sons que estão na memória. Essa memória é hoje potenciada pelo gigantesco arquivo de obras do passado – o que sendo uma inevitabilidade é, também, um facto sem precedentes históricos.

A memória que domina o ouvido comum não é da sua contemporaneidade: é a da tranquilidade do acordo dos sons e de músicas que não são definitivamente de hoje.

Nas artes visuais o seu equivalente está hoje nos museus.
É que hoje a música não é apenas uma, como, de resto, o concerto de hoje demonstra.

Hoje a música são muitas músicas.

E todas elas existem.

E na sua existência inscrevem-se no mundo.

A diversidade proposta é a diversidade dos modos de pensar a música, a tarefa de compor, o seu lugar no mundo.

O programa desta noite revela uma recusa radical da sedução e da regressão auditiva como uma marca do contemporâneo na música.

Afirmar e inscrever no mundo a liberdade interna dos compositores e da sua música é, hoje, provavelmente, o gesto mais radical.
O concerto Radicais Livres 3.1 propõe a audição peças de câmara de compositores com uma atitude musical (estética e «política») crítica.

A sua posição manifesta-se, desde logo, e, em primeiro lugar, na sua própria música - e não se disfarça com efeitos e mecanismos recuperadores.

A proposta que este concerto faz não se situa, portanto, no plano de uma reconciliação auditiva. Na verdade, do que se trata é de, através de novas formas de interpelação – incluindo (e é isso que está em causa) a partilha da sua liberdade composicional -, inventar a música em cada obra, e nisso propor interacções, novos sons, novas linguagens.
(José Júlio Lopes)
ORCHESTRUTOPICA SOLISTAS


RADICAIS LIVRES 3.1


18 Março 21.00 CCB PA


Programa


Salvatore Sciarrino :: Ommagio a Burri


Giacinto Scelsi :: Quarteto de cordas # 4


[INTERVALO]


Franco Donatoni :: Alamari


António Pinho Vargas :: Monodia - quasi un requiem


Intérpretes


Katharine Rawdon, flauta


Luis Gomes, clarinete


Elsa Silva, piano


Xuan Du, violino


Vítor Vieira, violino


Juan Carlos Maggiorani, violino


JanoLisboa, viola

Guenrikh Elessine, violoncelo
Marco Pereira, violoncelo

Contrabaixo, Vladimir Kousnetsov


Biografias e Notas de Programa


SALVATORE SCIARRINO Omaggio a Burri (1995) 13’
[Flauta, clarinete, violino]


Omaggio a Burri permite uma observação aprofundada das preferências pontilisticas de Sciarrino, incluídas nestes treze minutos de pontos e contrapontos, suspiros, guinchos, pequenas estridências.
O verdadeiro prodígio está em que tudo isto resulta, e é essa, aliás, a pedra/palavra-chave: sucesso.

Enquanto determinadas obras de câmara transmitem a impressão de terem instrumentos mais potentes – parecem sinfónicas - a mais recente e sobejamente conhecida destas obras, Introduzione all’oscuro (1981) para 11 músicos, realça a individualidade dentro do grupo. Não é disso que se trata em Omaggio a Burri. Esta especificidade, que pode não ser o deleite de alguns, suscita seguramente o interesse de outros.


Nascido em 1947, começou a compor em 1959, dando o seu primeiro concerto em 1962.

Sete anos depois, deixou Palermo para viver em Roma, depois em Milão em 1977 e finalmente para a Città di Castello em 1983, onde ainda hoje reside.

Academicamente, Sciarrino não é um produto de escolas de música. Apesar de ter desenvolvido contactos importantes com Antonino Titone, Turi Belfiore e Franco Evangelisti, foi efectivamente um auto-didacta, sendo que o seu conhecimento musical advém directamente do estudo sobre os compositores modernos e clássicos.
Recebeu vários prémios e aos 30 anos foi nomeado director artístico do Teatro Comunale di Bologna (cargo que exerceu entre 1978 e 1980). Entre os prémios mais recentes salienta-se o Prémio de Composição Musical da Fundação Principe Pierre, do Mónaco (2003) para Macbeth (melhor obra inédita de 2002), e o Prémio Internacional Feltrinelli, de 2003.

A mesma precocidade com que o seu estilo inconfundível se revelou, oferece-nos um invulgarmente longo e diversificado catálogo de obras. A docência ocupou grande parte da actividade de Sciarrino: para além das masterclasses, leccionou nos Conservatórios de Milão, Perugia e Florença desde 1974, até renunciar a todos os seus compromissos oficiais em 1996. Desde então, tem dedicado muito do seu tempo à escrita, como: Le figure della musica da Beethoven e Carte da suono scritti 1981-2001.


GIACINTO SCELSI Quarteto de cordas # 4 (1964) 10’
[Quarteto de cordas]


A música da segunda fase da obra de Scelsi (a que corresponde o Quarteto # 4, de 1964) é marcada por uma suprema concentração na ideia de notas isoladas e únicas com uma enorme mestria na manipulação da forma.

Estas notas únicas são reelaboradas através de sombras micro-tonais, alusões harmónicas e variações de timbre e dinâmica.

A polifonia emerge da monodia.

Os movimentos de Scelsi revelam uma unidade de gestos e a polifonia da sua escrita para cordas integra uma concepção puramente melódica que é assumida como um aspecto essencial do som em si mesmo.


GIACINTO SCELSI (1905-1988), compositor


Nascido em La Spezia, no seio de uma família aristocrática e vivendo numa Villa antiga nos arredores de Nápoles, apesar de ter tido um escasso estudo formal de musica é reconhecido hoje como um dos mais criativos compositores do século XX.

Scelsi estudou primeiro música em Roma e, mais tarde, em Viena como discípulo de Schönberg. Tornou-se num dos primeiros adeptos da dodecafonismo em Itália.

No final dos anos quarenta passou por uma profunda crise religiosa que o levou à descoberta da espiritualidade oriental e também a uma mudança radical do seu olhar relativamente à música. Rejeita as noções de composição e de autor a favor da improvisação.
Scelsi concebeu a criação artística como uma forma de comunicar uma realidade transcendental com o ouvinte.

Deste ponto vista, o artista é considerado um mero intermediário.

Por essa razão nunca permitiu que a sua imagem fosse associada à sua música.

Em vez disso, preferia ser identificado com uma linha debaixo de um círculo, um símbolo de proveniência oriental.

Foi amigo e mentor de Alvin Curran e outros compositores americanos expatriados como Frederic Rzewski que viveu em Roma nos anos 60.

Também “conspirou” com outros compositores americanos como John Cage, Morton Feldman e Earle Brown que o visitavam em Roma.
Alvin Curran disse a propósito de Scelsi: “Veio a todos os meus concertos em Roma, até ao último que dei poucos dias antes da sua morte…

Isto foi no Verão e ele não gostava de sair.

Apresentou-se de fato e chapéu em pele.

Era um concerto ao ar livre.

Acenou-me de longe, com olhos brilhantes e o seu sorriso de sempre, foi a última vez que o vi”.


FRANCO DONATONI Alamari (1983) 13’
[Violoncelo, contrabaixo e piano]


O título, bem como o material musical desta obra tem origem em trabalhos anteriores do compositor: Lame para violoncelo, Lem para contrabaixo, ambos de 1982, e Rima de 1979, este último com origem em Ed Insieme Bussarino de 1978.

O ímpeto de compor a partir de material de obras já existentes, é uma constante no trabalho de Donatoni, seja este originário das suas próprias obras ou das de outros compositores como Schoenberg ou Stockhausen.

Em nenhum dos casos se trata de uma colagem, mas antes de uma utilização de técnicas de composição muito precisas, demonstrativas de um certo automatismo em que o autor desenvolve um pequeno fragmento da peça tornando assim como impossível a identificação de um modelo.
O contrabaixo, instrumento central desta obra, é utilizado de uma forma pouco habitual o que lhe confere uma cor estranha.

Os instrumentos dão-nos elementos que vão desde o pizzicato, produzindo efeitos de uma “mecânica de precisão”, a trechos de grande exigência técnica e artística, passando por movimentos desarticulados que sugerem danças únicas que mergulham na atmosfera nocturna e fúnebre desta música.

Como é habitual em Donatoni, a textura musical exige um grande virtuosismo dos intérpretes.


FRANCO DONATONI (1927-2000), compositor


Franco Donatoni nasceu em Verona em 1927. Estudou composição no Conservatório Giuseppe Verdi com Ettore Desderi, em Milão e com Lino Liviabella, no Conservatório de Bolonha.
Em 1949 completou o curso de composição e de orquestração e em 1950 o curso de música coral. Fez ainda o curso avançado de composição com Ildebrando Pizzetti na Accademia Nazionale de S. Cecília, em Roma, e frequentou, em Darmstadt, os Ferienkurse de 1954, 1956, 1958 e 1961.

A par da sua carreira de compositor, Donatoni manteve uma intensa actividade como professor de composição, tendo ensinado nos conservatórios de Bolonha, Turim e Milão, na Accademia Nazionale de S. Cecília em Roma, na Academia Chigi em Siena.

Em 1972 Donatoni foi convidado pela Deutscher Akademischer Austauschdienst para uma residência de um ano em Berlim.

Em 1985 recebeu o título de “Commandeur dans l’Ordre des Arts et des Lettres” do Governo Francês.

A sua música e o seu pensamento musical influenciaram várias gerações de compositores e a sua vasta obra é regularmente apresentada em concertos.

Em 1990 o Festival Settembre Musica de Turin dedicou uma série de concertos à sua música e, em 1982, em Milão, o Festival “Milano Musica” organizou um importante programa com a sua música, apresentando um grande número das suas mais importantes obras, incluindo a primeira audição de "Feria II"– para órgão e "A arte da fuga" de Bach, numa transcrição de Donatoni para orquestra.

Na década de 90 devem ser mencionadas obras como "Sweet Basil" (1993) para trombone e Big Band, "Portal" (1995) para clarinete baixo, clarinete em si bemol e orquestra, "In Cauda II" (1996), e "In Cauda III" (1996). Em 1996 completou o ciclo (iniciado em 1983) com "Françoise Variationen" para piano. Em 1998 a sua ópera curta, "Alfred Alfred", foi apresentada no Festival Musica de Strasbourg. Faleceu em Milão em 2000.


ANTÓNIO PINHO VARGAS Monodia – quasi un requiem (1995) 13’
[Quarteto de cordas. Encomenda das Jornadas de Arte Contemporânea do Porto de 1993]


“Esta peça foi concebida para ser tocada usando um pequeno sistema de amplificação e reverberação, excepto se for apresentada numa sala com muita ressonância.

O material original é muito simples: duas melodias, uma linha a duas vozes e um agregado cromático.

A atitude rítmica deve ser sempre solta e flexível…
A ideia de ressonância é central nesta peça.

O som de cada nota e a imaginação tímbrica dos músicos são muito importantes.
O meu primeiro título foi Quasi un Requiem.

É uma peça acerca da extinção do som e da vida.

É sobre o absurdo da morte, do racismo e da intolerância. A secção central é uma espécie de “non-sense” passacaglia… “


ANTÓNIO PINHO VARGAS (1951), compositor


“Inquietação é uma das palavras que melhor sintetizam a personalidade artística de António Pinho Vargas, um músico integral que tem abordado com igual sucesso a composição livre de preconceitos de escola e os mais diversos géneros musicais, a interpretação e o ensaio musical, a pedagogia e a gestão cultural.

A sua música e o seu posicionamento estético têm contribuído para uma mudança radical no panorama musical nacional nas últimas décadas, tendo sido a sua influência determinante na aceitação em Portugal do pluralismo no âmbito da composição erudita.
Licenciado em História pela Faculdade de Letras da Universidade do Porto, concluiu o curso de composição no Conservatório de Roterdão, na classe de Klaas de Vries.

É professor na Escola Superior de Música de Lisboa desde 1991 e tem compaginado os seus labores docentes com a assessoria musical na Fundação Serralves e do Centro Cultural de Belém.

É ainda co-fundador e co-director artístico da OrchestrUtopica.
Ligado ao jazz durante vários anos e sendo unanimemente considerado um dos mais importantes músicos portugueses neste domínio, começou o seu percurso criativo no âmbito da composição erudita em fins dos anos 80.
As obras compostas até 1993 revelam a aderência à técnicas de composição mais rigorosas, ligadas à vanguarda musical posterior à Segunda Guerra Mundial. Porém, nesse ano, a composição de “Monodia.

Quasi un Requiem” marca um primeiro ponto de viragem na sua obra, que monstra a partir de então uma liberdade na escolha de materiais e de linguagens pouco habitual na música portuguesa contemporânea.
À clareza estrutural das suas obras une-se a exploração exaustiva de novas abordagens de aspectos característicos do estilo tonal (por exemplo, a pulsação regular em obras como “Estudos e Interlúdios”, para percussão, escrita em 2000).

A sua obra em conjunto revela ainda uma rara capacidade para evocar e desenvolver em termos sonoros imagens poéticas, por vezes referidas nos títulos das suas peças.

Tem-se destacado como compositor de obras vocais de grande formato: as óperas “Édipo Tragédia do Saber” (1996) e “Os Dias Levantados” (1998), respectivamente sobre textos de Pedro Paixão e de Manuel Gusmão, e a oratória “Judas” (2002).”

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